O Mágico e Cativante Simbolismo de Leftovers
- Pipoca de Pedra
- 6 de mai. de 2019
- 8 min de leitura
Atualizado: 28 de fev. de 2020
Desde 2011, o estouro mundial da série Game of Thrones vem perturbando a emissora HBO em ter algo digno para suprir em seu nobre horário nas noites de domingo. 3 anos depois, no auge do seriado, a substituição perfeita viria de uma das formas mais inesperadas possíveis: uma série de ciência, filosofia e religião, encabeçada pelo criador de Lost.
The leftovers veio como uma adaptação literária da obra de Tom Perrota, mas que acabou expandindo de forma ousada e bem executada, o universo criado pelo autor (que age como co-roteirista da série). Nela, acompanhamos inicialmente uma pequena cidade do interior de Nova York, tendo de encarar o fato de que na manhã de 14 de outubro de 2014, 2% de toda a população mundial (cerca de 140 milhões de pessoas) simplesmente desapareceram. Mas, se está lendo este texto repleto de spoillers, você provavelmente já assistiu e sabe muito bem disto.

A série de Lindelof pode ser descrita como uma aula perfeita de filosofia. Inicialmente, podemos analisar os conceitos existencialistas de Aristóteles e Platão, em suas discussões sobre o sentido da vida. Para os pensadores, o ser humano somente existe porque algo dentro dele permite isso. Porque há certo objetivo para que este continue vivendo dia após dia.
Esta teoria, pode ser colocada em paralelo com personagens como Nora Durst, que durante todo seu arco acaba subconscientemente buscando estar novamente com seus filhos, ou seu irmão Matt, que dedica sua vida a encontrar respostas vindas da sua completa devoção a Deus. Estes personagens vivem para isto, e sem este objetivo, eles se sentem completamente perdidos. Até encontrar algo novo para se agarrar.
Em contraponto, temos uma abordagem mais niilista, embasada nas teorias anti-existencialistas de Dostoievski e Nietsche. Esta quebra da busca por objetivos, é bem retratada na personagem Lory, ex-esposa de nosso protagonista. Desde o início da série, a personagem é apresentada de forma completamente perdida e sem respostas. Tentativas de suicídio, reclusa familiar e três diferentes abordagens em tentar ajudar pessoas, mostram a falta de rumo na existência da personagem, que em muito difere dos demais.
Por fim, nossa estrela Kevin Garvey traz uma completa desconstrução da jornada do herói de Joseph Campbell. Nas maiores histórias já contadas, temos esta fórmula mágica para cativar o público, onde o herói é chamado para a aventura, tem o tempo de recusa, acaba saindo do lugar comum, encontra seu mentor, derrota seu inimigo, e retorna para casa evoluído, crescido e realizado. Com Kevin, como vimos no último episódio, isto não acontece. Apesar ser apenas uma tática para tentar reconquistar sua amada, o teatro de se fazer completamente esquecido ao encontrar Nora, é um perfeito retrato de como ao fim de todo este tempo, nosso querido xerife de Mapleton não mudou em nada. Ainda com suas dúvidas e defeitos, Kevin é um protagonista que quebra esta estrutura de ida e retorno, que tanto vimos em sagas consagradas como Star Wars, Harry Potter, Matrix… Ou mesmo em Lost, do próprio Lindelof.
Mas deixando de lado esta discussão mais acadêmica, vamos aos maiores simbolismos que esta bela obra nos trouxe. Ao começar pelo cigarro. O mais constante elemento de cena da série, traz tanto sobre a personalidade dos personagens que quase nos obriga a rever os 28 episódios sobre uma nova ótica. Trazendo novamente o nome Niilismo (pensamento que reduz por completo pensamentos de superioridade e crença, e traz um completo desapego à vida), o cigarro resume de forma precisa os Remanescentes Culpados, seus principais usuários. Tomando esta partida, o objeto tabagista é ainda uma âncora para aqueles que estão flertando com este desapego existencial.
Durante toda a primeira temporada, temos Kevin sendo constantemente interrompido sempre que tenta fumar. Certas vezes por seu pai, outras por um cervo (falaremos dele mais tarde), ou mesmo por uma louca explosão de um bueiro. A primeira vez que vemos o personagem conseguindo acender calmamente seu cigarro de forma sossegada, ocorre somente no décimo sexto episódio da série, poucos momentos antes dele perceber que tentou de fato se matar, jogando-se no rio com um bloco de concreto amarrado ao tornozelo.
Isso é agravado ainda mais no último episódio, quando Kevin acende um cigarro após ser rejeitado inicialmente pela Nora, mas recusa um quando ela parece estar se abrindo para ele. Do outro lado, no momento em que Nora decide contar-lhe a verdade, ela desiste de acender seu cigarro pois finalmente escolheu a vida (ao lado do Kevin).
Este objeto metafórico, também é bastante presente nos arcos da Lory. Ao dar o aval para que Nora escolha viver com seus filhos, ela pede o pagamento em quê? Exatamente. Cigarros! E volta a fumar depois de anos quando decide se suicidar durante um mergulho (ato que acaba sendo impedido pela ligação de sua filha). Falando na jovem Jill, ela presenteia sua mãe justamente com um isqueiro escrito “Não se esqueça de mim”, para que toda vez que a mãe pensar em desistir da vida (Acender um cigarro), lembre-se daquilo que desde o início a mantém viva. Sua família.
Outro forte simbolismo da série ocorre no primeiro e nono episódio da série, nos momentos em que vemos como ocorreu a partida. Seja na primeira cena, onde uma mãe desesperada no carro para de ouvir o choro de seu filho, ou na última, onde Lory assiste ao seu bebê sumir durante o ultrassom, temos uma discussão de que talvez a partida não tenha sido tão aleatória quanto o reverendo Matt sugere. Pegando ainda de exemplo os filhos da Nora, a amante do Kevin, e outros casos paralelos descritos durante a série, têm-se a impressão de que aqueles que sumiram, tiveram isto desejado.
Isso aumenta o sentimento de culpa que enlouquece todos aqueles que ficaram. A suposição de que um ente querido seu simplesmente sumiu pois naquele exato momento você estava desejando que isto acontecesse, talvez seja a principal cereja que nos faz aceitar o quão louco se tornou o mundo de leftovers.
Um simbolismo mais sutil e complexo se dá, na série, por meio dos animais. Sua presença constante pode ser lembrada como a quantidade de pombos que fez Matt ganhar a aposta e reafirmar sua fé, ou o cervo assustado que corria causando destruição por Mapleton. Este segundo, acaba trazendo paralelos com a própria personalidade do nosso protagonista, ao se mostrar perdido, sem se encaixar no lugar onde está, e tendo a força bruta como válvula de escape.
Outra vez que vemos isto, é com o bode. Mas não aquele que derrama seu sangue todos os dias em Miracle como uma analogia ao ritual de eucaristia cristã. Mas o bode que carrega os pecados no casamento do último episódio. Após cerca de 28h de série, ver um animal tão simbólico em questões religiosas sofrendo para carregar os pecados de todos, e estes pecados sendo tomados para si pela personagem de Nora, é uma catarse sutil mas que brilha os olhos do espectador mais apaixonado. Ainda mais quando isto ocorre logo após Nora descobrir a mentira na freira que ela julgava ser um exemplo de boa conduta, e perceber que em certas situações, nós apenas precisamos de uma história melhor. O que nos leva, ao final.
Mas claro, não há como falar do simbolismo de Leftovers sem falar de religião. A série trata, do início ao fim, de um claro paralelo com o arrebatamento bíblico (primeira temporada) e com a tribulação (terceira temporada). Segundo o apóstolo João, após serem arrebatados os justos, haverá um período de 7 anos de tribulação, onde tudo será posto em ordem para o juízo final. O paralelo, até mesmo no tempo em que ocorre, é bem claro.
Outras rimas narrativas bíblicas são encontradas durante a série, como a constante e repetitiva rotina de Miracle como uma crítica direta ao ritual litúrgico católico (onde os fiéis repetem semanalmente o processo realizado na santa ceia, com a eucaristia sagrada), o apego e superfaturamento de objetos que se dizem sagrados, e claro, a conversa com Deus.
A santa trilogia de Matt é um dos pontos mais divertidos de se acompanhar durante a obra. Os 3 episódios, sendo um por temporada, contam toda a jornada de um homem em busca de respostas para a sua crença, e encontrando da forma mais inesperada possível ao fim. Após ter um sinal divino que o ajudaria a salvar sua igreja, mas perdendo mesmo assim por outro acaso, ter de manter sua fé contra tudo e todos em prol do amor por sua esposa e a esperança de seu retorno, ter se sacrificado, apanhado e mesmo assim ficando de pé, Matt finaliza seu arco de forma completamente inesperada.
A bordo de uma tripulação louca que idolatra um leão Mr. Catra, Matt acaba descobrindo um homem que diz ser Deus, em pessoa. No entanto, ao tentar confrontá-lo por sua blasfêmia, Matt é ignorado pelo homem. E não há nada mais cruel do que ser ignorado por Deus. Mesmo sendo um claro charlatão, este paralelo com o que Matt estava realmente sentindo em seu interior, cria um dos diálogos mais geniais da história das séries. Ao fim, devorado pelo leão, vemos o Deus cristão sendo morto por um deus pagão, reforçando os paralelos com o pensamento de Nietzsche.
Damon Lindelof havia dito previamente que a série se tratava, em sua raiz, de uma história de amor entre Kevin e Nora. E como toda boa história de amor, temos um claro espelho entre os dois personagens. Um, perdeu todos que tinha por um acaso misterioso do destino. O outro, acaba perdendo todos por suas próprias ações. A perfeição no encaixe dos personagens acaba rimando diversas vezes em como eles conseguem chegar sempre ao mesmo ponto, por caminhos completamente diferentes.
Várias teorias surgiram após o final definitivo da série. Talvez o marca-passo seja uma explicação para as “visitas” de Kevin ao outro mundo, como sendo apenas alucinações causadas por suas paradas cardíacas. Talvez, Nora de fato não tenha ido até o outro lado, e o momento em que ela se desespera quebrando a porta para sair do banheiro, seja uma dica de como ela escapou da máquina.
O fato do último episódio ter sido na visão da Nora pedia tais explicações, de fato. Sejam verídicas ou não. Talvez se o mesmo tivesse a perspectiva de Matt, ou Kevin, não haveria a necessidade de citar o desfecho de cada personagem, ou de responder as questões sobre esta suposta partida. Mas isso é o que torna a caricatura dos personagens tão constante e marcante. É o charme da série.
Mas nada disso importa, ao final. O filosofo Jean-Paul Sartre questiona em uma anedota que: “Se você é convocado a uma guerra, com sua mãe doente em casa… Você vai para que faça uma diferença mínima em algo grandioso, ou fica para fazer a diferença grandiosa em algo mínimo? ”. A resposta é a mais simples possível. Não há resposta. Constantemente a série tenta nos dizer que o maior mistério da perda é a ausência de respostas, e como devemos aceitar isto. O absurdismo defendido por ele nos diz constantemente que não há uma verdade absoluta e universal, pois, as respostas para o certo e o errado existem dentro de cada um.
Não interessa saber qual é a da dupla personalidade maluca que o Kevin assume durante seu sonambulismo, ou porque Austrália, porque Miracle foi poupada, como Mary retomou sua consciência ou tudo aquilo que achamos ter respondido no último episódio, mas não temos certeza. Nada disso importa. Somente acredite, aceite, e agarra-se ao máximo naquilo que pôde absorver.
Leftovers é uma aula de vida. Um momento de crescimento pessoal e aceitação. De fato, não é para qualquer um. Mas se em menor ou maior escala você conseguiu ser tocado por esta obra, sinta-se agraciado. Aprenda com ela, repasse e se possível reveja. Mesmo as perguntas sem respostas devem ser tratadas com mais cuidado.
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