(Crítica) A Mãe de Darren Aronofsky
- Pipoca de Pedra
- 2 de mai. de 2019
- 7 min de leitura
Atualizado: 28 de fev. de 2020
O promissor filme do visionário Darren Aronofsky finalmente dá as caras nas telonas. Um sentimento misto e dividido entre adoradores e repudiadores da obra, toma as redes sociais na semana em que o filme tomou o primeiro lugar nas bilheterias mundiais, e lotou a internet com reviews, críticas e uma enorme gama de teorias. Mas sobre o que realmente se trata este filme? Quantas camadas podem ser extraídas deste roteiro? Há uma forma segura de se passar uma sinopse que traga interesse a algum leigo/desavisado ir ver o filme, sem estragar o plot? Ao adentrar neste promissor clássico moderno, temos uma clara primeira camada, onde nos é apresentado a pacata vida de um escritor em crise de criatividade com sua esposa. Isto é mudado quando um escrito seu se torna um sucesso estrondoso e repentino. Uma grande crítica social ao estilo de vida de um escritor, e como ele pode e/ou deve lidar com fãs e imprensa, recheia esta trama de forma a manter interessado até mesmo a parcela do público que por ventura não mergulha nas metáforas mais profundas.
Um mix de loucura, fantasia, criação e recomeço ilustram uma mente criativa e agitada, onde o centro de todas as emoções são seu criador e inspiração durante todo o ciclo de vida de sua obra. Mas vamos mergulhar um pouco mais fundo, e trazer à tona o viés bíblico e religioso por trás de Mãe! Esta segunda camada inicia sua alegoria logo no início, com a personagem de Jennifer Lawrence sendo apresentada com vestes transparentes, mostrando uma mulher totalmente confortável e livre de vergonha ou pecado. Ele (Javier Barden), surge logo em seguida como um criador desmotivado, com uma obra aclamada, porém sem conseguir criar algo novo. Ele, no caso, seria Deus, criador de tudo. E a Mãe seria a nossa natureza. Pura, nova e “virgem”. Um detalhe importante logo neste início se dá pela diferença de idade dos atores, fator que mais tarde seria evidenciado pelo médico visitante (Ed Harris), com a personagem de Lawrence parecendo ser filha do personagem de Barden. Isso pode se alegorizar no fato de Deus ter criado a terra (logo seria mais velho), mas não se põe em uma hierarquia superior. E sim em um casamento, onde, na teoria, ambos teriam a mesma “importância”. O tal médico visitante entra na casa perdido e hesitante, a princípio se mostrando um simples senhor que confundiu-a com uma pousada, e logo depois se mostrando um fã moribundo do escritor, almejando conhecê-lo como um último desejo. Logo nesta primeira noite como hóspede, o desconfiado médico passa mal no banheiro, onde o público consegue ver de relance uma cicatriz em sua costela, e seu próprio coração sendo expelido descarga abaixo. Em seguida, somos apresentados à personagem de Michelle Pfeiffer, esposa do médico, que surge na casa como uma mulher sensual, imponente e principalmente entrometida e irritante. Alegoricamente, o estranho casal seriam respectivamente Adão (fã número 1 da obra do criador) e Eva (Mulher feita a partir da costela do homem).
Um artefato raro e especial para o criador é guardado em seus aposentos com carinho e ciúme, não sendo autorizado ser sequer tocado por terceiros. Este artefato é visto com respeito por Adão, e com extrema curiosidade por Eva, que em um impulso de tocar o objeto proibido, o quebra. Espelhando o genesis bíblico, temos o fruto proibido sendo a única coisa restrita pelo criador aos hóspedes, porém “consumido” pelo casal por conta da insistência de Eva. Assim como na bíblia a parábola traz nas entrelinhas o pecado original da carne sendo contado em forma de fruto, a cena seguinte do filme traz os hóspedes desse mundo consumindo os prazeres da carne em seus aposentos.
Seguindo a trama, surgem em cena os 2 filhos do casal com uma intriga familiar de pensão causando uma briga séria entre ambos, e resultando na morte do mais novo pelas mãos do mais velho. Temos ali, a recriação da história de Caim e Abel.
A morte de Abel derrama sangue sobre o chão de madeira da casa, sem conseguir ser limpa, como a mancha da crueldade humana que nunca será esquecida pelo mundo. Já adiantando um pouco, mas mantendo o viés, tal mancha vai se espalhando até apresentar o formato de uma vagina feita de sangue, que ao ser tocada pela Mãe abre espaços da casa onde ela nunca havia explorado. Esse novo canto da casa encontrado pela Mãe, pode representar o prazer conhecido tardiamente pela mulher, mas que mora próximo ao inferno (representado por um porão habitado por fogo e uma lavadora, onde os pecados são lavados, mas não totalmente, já que saem de lá direto para o chão)
Com a morte de Abel, o criador mostra o seu perdão aos homens e abre sua casa para o velório do filho mais novo do casal, momento este em que a casa (Mundo) nunca esteve tão cheia. Com a casa cheia, mesmo reunida em prol de luto e lamúria, os habitantes caem na bebedeira e esbornia carnal (Sodoma e gomorra), com o homem caindo (pecado como ação comum), vinho derramado (sangue caindo em batalha) e a terra gritando por socorro sem ser ouvida. No apogeu de tal descaso, uma pia que estava solta é estourada liberando a casa de todos os seus habitantes, deixando apenas o criador, a mãe, e um chão alagado sob uma bagunça imensa. Repetindo a parábola de Noé (outra obra do próprio Aronofsky), o dilúvio lava tudo o que havíamos presenciado na casa até agora para um recomeço. Deve-se ressaltar ainda, um líquido amarelo que a Mãe toma em seus momentos de maior estresse e ansiedade. Tal líquido funcionaria basicamente como um anticoncepcional, um controle hormonal da terra para não trazer um filho para este mundo caótico. Esta segunda parte do filme talvez seja o grande gatilho de estranheza que separa um filme “normal” de uma história realmente atípica. Pressionado pela Mãe, o criador se liberta de suas preocupações e finalmente consome seu amor por sua esposa. Na manhã seguinte, sentindo um ardor em seu peito, a personagem da Mãe descobre estar grávida. Inspirado pelas visitas, homicídio, amor e vida, o criador encontra forças para escrever sua nova e definitiva obra. Temos assim a criação do Novo Testamento. Com o novo testamento, a chegada de mais uma personagem: A agente do criador. Uma personagem passada batida por muitos, com pouquíssimo tempo em tela, mas que traz uma alusão aos transcritos bíblicos, falsos testemunhos e tardiamente a falsos profetas, podendo até mesmo se entender a interpretação do surgimento de novas religiões no século I. Com o lançamento da nova obra do criador, temos uma breve alusão à santa ceia como um banquete íntimo realizado pela Mãe para o casal, mas que logo é atrapalhado pelos fãs fervorosos da nova obra que tiram Deus do conforto do mundo e o fazem “esquecer” da mãe natureza. A partir disso, Darren Aronofsky se mostra não só um excelente roteirista mas um diretor de grande destaque. Uma cena em plano sequência de tirar o fôlego mostra a passagem dos anos por suas batalhas e guerras, indo de mão, pedra e pau, até o armamento mais pesado e tecnológico. Em paralelo a este show visual, a personagem mãe tem suas fortes contrações de parto emulando as dores do mundo perante o ódio do homem, em forma de furacões, tsunamis e demais catástrofes. Neste momento há mais uma metáfora sutil, mas precisa, ilustrada pelo sumiço repentino do criador, representando a Idade Média (quando Deus “saí de férias”) Com o retorno do criador para o mundo, temos o nascimento do filho de Deus. Em um show de atuação de Lawrence e Barden, o nascimento do bebê e o resgardo da mãe com medo de que seu bebê seja levado ao mundo pelo criador. A alusão dos presentes dos reis magos, e logo mais da descida do filho do homem à terra traz ao público a angústia e desespero da Mãe em temer a perda do filho, e logo depois trazendo um silêncio cortante com o pescoço do bebê sendo quebrado (crucificação) e sua carne sendo dividida e comida (hóstia).
O perdão do criador aos que assassinaram seu filho e se mostram arrependidos traz uma mescla de propaganda e crítica religiosa, dependendo da interpretação e fé do telespectador, e caminha o arco dos personagens para o final do filme. Seguindo as revoltas do público contra a casa (mundo) e a mãe (natureza) se seguem constantes deixando o criador em constante conflito entre seu povo e sua amada. Não aguentando mais todos os habitantes que a rodeiam, a mãe se revolta de vez decidindo sacrificar todo o seu mundo, tendo em vista o quão perdido ele está. Temos assim, o Apocalipse. Nesta hora temos uma série de alusões em cima dos objetos de cena mostrados ao longo do filme. O isqueiro que incomodava a mãe no início do filme, foi logo escondido por ela. A calcinha que representava o amor carnal como algo mais baixo e sujo, também foi escondido pela terra. Isso pode trazer um forte paralelo de como o planeta “cobre” tudo aquilo que mais faz mal a ela. As civilizações perdidas, as construções deterioradas e tanto como. O isqueiro supracitado retorna à trama de forma orgânica para trazer a dizimação dos pecadores (curiosamente não havendo a salvação dos justos, e sim mostrando um corrompimento completo). Em conclusão, o criador toma nos braços sua inspiração e lar, agora queimada e morimbuda, e usa como fonte de reconstrução: o Amor. Com a entrega do seu coração ao criador, a natureza morre para que possa iniciar tudo de novo. Uma curiosa decisão de Aronofsky foi de dar uma nova cara para a natureza, mas manter a casa e o criador com a mesma visão. Esta visão pode trazer inúmeras interpretações para cada um, mas acredito ter sido um final intencionalmente aberto. Enfim. A nova obra de Darren Aronofsky me trouxe uma grata e empolgante experiência. Tentei reunir aqui neste (longo) texto as metáforas e semiótica no texto após a sala de cinema. Muitas coisas excelentes do texto acabaram ficando de fora como: A mãe repudiando um dos visitantes que insistia em ajudá-la a pintar a casa, aludindo o conflito entre aqueles que tentam moldar a criação da flora terrestre enquanto o planeta insiste em retornar sua forma primordial, ou a valorização exacerbada de objetos chulos da casa do criador por seus fãs, a realização dos fiéis em simplesmente denegrir a casa dele para mostrar que “estiveram aqui”… Enfim. Acredito que com a passagem dos anos e revisitadas na obra, novas interpretações e surpresas podem vir a tona dessa original e inesperada obra.
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